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Desafio triplo: Norte de Moçambique enfrenta conflito armado, desastres naturais e a pandemia da Covid-19

Insurgência islâmica deixou quase 1,5 mil mortos desde 2017 e provocou o êxodo de 250 mil pessoas em questão de meses; equipes de ajuda humanitária afirmam que pandemia complica ainda mais a situação
Mulher segura criança depois de ataque contra a aldeia onde ela morava, no Norte de Moçambique Foto: MARCO LONGARI / AFP
Mulher segura criança depois de ataque contra a aldeia onde ela morava, no Norte de Moçambique Foto: MARCO LONGARI / AFP

“Eu era um mercador, tinha uma pequena loja. Mas assim que eles vieram, queimaram minha loja e meus bens. As roupas que estou usando são as únicas que tenho."

A história de Maquela Salimane, que hoje vive em uma área relativamente segura com a mulher e os quatro filhos, é uma das milhares contadas pelas vítimas do conflito no Norte de Moçambique, envolvendo milícias armadas — algumas associadas ao Estado Islâmico (EI) — e as forças do governo desde 2017.

Segundo estimativas do projeto ACLED, que mapeia dados sobre conflitos armados ao redor do mundo, mais de 1,4 mil pessoas morreram nos últimos dois anos e meio. Duzentos e cinquenta mil foram obrigadas a fugir de casa, de acordo com o Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários.

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As raízes da insurgência remontam a 2014, na província setentrional de Cabo Delgado, onde alguns líderes religiosos questionavam a “pureza” do islamismo no país — 17% dos moçambicanos são muçulmanos. Indo além do discurso radical, em outubro de 2017 ocorreram os primeiros ataques, contra postos da polícia em Mocimboa da Praia.

A principal milícia da insurgência, a Ahlu Sunna Wa Jama, quer criar um estado inspirado por uma visão deturpada da Sharia, a lei islâmica. Em 2019, deu sinais de aproximação com o Estado Islâmico, e o grupo terrorista chegou a assumir alguns dos ataques em solo moçambicano, algo que analistas consideram ter sido apenas um ato de propaganda gratuita.

— Chamar esses grupos de afiliados ao EI é apressar demais o passo. Eles estão em um processo de expansão, mas não a ponto de considerarmos essa uma insurreição do EI. As vozes extremistas locais, únicas ao Cabo Delgado, não se alinham completamente ao EI ou à Al-Qaeda — afirmou Jasmine Opperman, especialista em África do ACLED, ao GLOBO.

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Cabo Delgado é uma das áreas mais pobres de Moçambique. Apesar de ser base das maiores operações de exploração de gás natural do país, poucos postos de trabalho são oferecidos para a população local. Nesse contexto, o ideal de uma sociedade islâmica “pura” é vendido como antídoto contra a corrupção, a pobreza e o domínio das elites econômicas.

— Quando eles (extremistas) passaram a ficar do lado dos jovens e dos frustrados, conseguem mais adeptos — diz Opperman.

Extremistas e criminosos

A insurgência não é um movimento coordenado. Além das milícias islâmicas, organizações criminosas, muitas vezes treinadas por ex-policiais, realizam ataques para eliminar a presença do governo central, abrindo caminho para suas atividades ilegais. Analistas reconhecem a presença de estrangeiros, mas com uma influência bem menor do que afirmam as autoridades.

— O governo nega as raízes locais. Não quer admitir fracassos. Insistem em dizer que é tudo resultado da influência estrangeira. As dinâmicas locais são mais evidentes — afirma Janine Opperman.

Em março, quando as milícias lançaram ofensivas em Cabo Delgado, com centenas de mortos entre os civis, as forças de segurança se viram incapazes de conter os ataques. Regiões inteiras foram tomadas pelos extremistas, incluindo áreas de Mocimboa da Praia , em agosto, e duas ilhas no Oceano Índico, na semana passada.

Os próprios agentes do Estado são acusados de abusos e execuções extrajudiciais, e de atuarem apenas para proteger instalações ligadas à exploração de gás.

— O governo de Moçambique precisa de ajuda, ninguém pode negar. Eles não têm a capacidade de lidar com a situação — opina Opperman.

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As autoridades de Maputo não parecem dispostas a concordar com uma força regional em seu território, como defende a África do Sul, muito menos uma intervenção militar internacional, como sugeriu o instituto ligado ao ex-premier britânico, Tony Blair.

Ao mesmo tempo, apostam também no engajamento social. No mês passado, foi lançada uma agência de desenvolvimento para o Norte, com a tarefa inicial de fornecer itens básicos, como água e comida, além de criar oportunidades de emprego.

— Se funcionar, pode mostrar que o governo está mudando sua forma de agir, com vontade de ajudar as pessoas. Mas se virmos um processo lento , o projeto pode se tornar um calcanhar de Aquiles — afirma Opperman.

‘Desafio triplo’

Longe das decisões políticas, os relatos de quem enfrenta o conflito, seja como vítima, seja trabalhando para ajudar àqueles que, como Maquela Salimane, fugiram de casa para não morrer, mostram o quão urgente é uma ação para pôr fim à crise.

— O trauma das pessoas é visível, é difícil colocar em palavras os desafios que elas enfrentam — afirma a curitibana Mariana Alcoforado, que atua como delegada de proteção do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) em Pemba, sendo responsável por supervisionar ações para ajudar os deslocados. — Muitos foram feridos, viram atos de violência muito brutais, se separaram de filhos, dos pais.

Alcoforado está no Norte de Moçambique desde março, sendo por vezes o primeiro contato com quem chegou das áreas de conflito. Em entrevista ao GLOBO, conta que, antes de chegar a Pemba, capital da província e destino da maioria dos deslocados internos, muitos passaram dias na mata, sem água ou comida, e caminharam longas distâncias em busca de segurança.

Mesmo antes da intensificação dos combates, Moçambique já enfrentava uma situação humanitária complexa. No ano passado, dois ciclones, Idai e Kenneth, deixaram mais de 1.300 mortos e provocaram danos bilionários. Muitos dos hoje deslocados pelo conflito haviam perdido tudo nas tormentas, e se viram novamente obrigados a lutar pelas próprias vidas.

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No começo do ano, foram registrados os primeiros casos do novo coronavírus no Norte de Moçambique — hoje, é a região de maior incidência da Covid-19 no país.

— Nós estamos enfrentando um desafio triplo — pontuou ao GLOBO Daphne Lucas, porta-voz do CICV para o Sul da África. — Essa situação (a pandemia) é mais um fator de vulnerabilidade. A população chegando às cidades, em condições precárias, amplia o risco.

Apesar da pandemia, Mariana Alcoforado lembra que não é possível interromper a ajuda humanitária para os que dependem dela para sobreviver.

— Temos que tomar cuidados com a proteção de nossa equipe, e também para não colocar a população em risco, o que acaba fazendo com que nossas operações sejam mais difíceis. É um trabalho difícil, pesado, mas procuramos focar nas pequenas vitórias que conseguimos, e na importância do trabalho que fazemos.